segunda-feira, 27 de junho de 2011

Um leve toque de Sophia...





 A Escola de Atenas, de Rafael (1506-1510)


É muito comum estudantes e professores de Filosofia serem questionados acerca da natureza e dos propósitos da mesma. Se, por um lado, todos imaginam saber qual o escopo do ensino das Letras, qual a importância do ensino da Matemática, qual o caráter do ensino da Física, qual o interesse do ensino da Química, qual a necessidade do estudo da Biologia, da História e da Geografia, pouquíssimos são aqueles que reconhecem a legitimidade da Filosofia e sua verdadeira contrapartida. No entanto, antes de prosseguir, é mister observar que Filosofia não é, sobremaneira, argumento de religião – embora possa fundamentar a Teologia enquanto uma possibilidade ou tentativa de compreender lógica e racionalmente o “fenômeno” divino. Porém, diga-se, a Filosofia pensa Deus e não simplesmente o aceita. Emerge, aqui, então, uma primeira distinção: enquanto as doutrinas religiosas estruturam-se mediante a experiência (muitas vezes mística!) da fé, a Filosofia estrutura-se a partir da razão.
Nestes termos, a Filosofia constitui um campo do conhecimento e não um postulado ou corolário de dogmas que devem ser observados, sob pena do crente ou fiel ser punido, castigado ou até mesmo execrado. A diferença entre Filosofia e religião é, portanto, uma das notas preliminares que devem ser consideradas, haja vista confundirem-se a seriedade teórico-epistêmica da postura do filósofo com a austeridade ascética do cristão empedernido. Todavia, pode-se objetar este argumento contrastivo, destacando-se que, assim como a religião, a Filosofia está preocupada com as questões fundamentais da existência. Porém, deve-se advertir que, quando a racionalidade filosófica perscruta a origem (arké) e o télos (fim), ela o faz com vistas no mundo dos homens e não em um suprassensível para além das estrelas...
Pois muito que bem, se a Filosofia é conhecimento racional, qual a diferença dela em relação à Ciência que também se utiliza da racionalidade como parâmetro estruturante do saber? Ora, tanto a Filosofia, quanto a Ciência buscam as causas das coisas. Efetivamente falando, só se pode conhecer filosófica e/ou cientificamente o mundo e/ou a realidade (física ou humana/social) mediante a investigação sistemática, regular e coerente das causas. É, justamente, por isso que tanto a Filosofia, quanto a Ciência diferem do senso comum, porquanto ambas não aceitam passivamente, isto é, sem análise crítica, as superstições e preconceitos histórica e socialmente construídos. No entanto, na medida em que a Filosofia busca compreender a realidade a partir de um ponto de vista eminentemente teórico-especulativo, ela se caracteriza como um saber totalizante; ao passo que a Ciência delimita pontualmente seu objeto de estudo, investigando, a partir de métodos e técnicas (instrumentais), a realidade física (como no caso das ditas hard sciences, isto é, das chamadas “ciências duras”, tais como a Química, por exemplo) ou, ainda, a realidade humana e/ou social (cultural).
Se, como diz o adágio popular, “de médico e louco todo o mundo tem um pouco”, tenha-se plena certeza que cada um de nós, inequivocamente, é também um pouquinho de “filósofo”. Quando pretendemos “descobrir” quem somos – na acepção mais genuína do verbo ser; quando questionamos o sentido da vida; quando desconfiamos das certezas absolutas e, ainda, quando buscamos um entendimento do contexto histórico-social humano, já estamos a caminho de tudo aquilo que os grandes pensadores elaboraram. Todavia, deve-se ficar bem claro que a Filosofia não se confunde com a Psicologia e que ambas não tem nada a ver com autoajuda. Ora, a Psicologia é uma ciência que visa, mediante diversas abordagens, garantir ou restituir a integridade do indivíduo; já a Filosofia está muito mais interessada em fazer um uso teórico da razão do que propriamente promover o bem-estar psíquico. Em última instância, a Psicologia trata da subjetividade humana, ao passo que a Filosofia pergunta-se, como bem ensina Kant, “o que posso conhecer?”, “o que devo fazer?”, “o que posso esperar?” e “o que é o homem?”. Vê-se, assim, que a Filosofia difere da Psicologia e que nem uma e nem outra compactuam com a postura tacanha de “superação” de dificuldades propalada de modo vulgar pela literatura de autoajuda que graça nas estantes das livrarias que negociam verborreias infundadas como se fossem verdadeiras teorias.
Porém, de todas as confusões e impropérios que orbitam ao redor da Filosofia está o subproduto mais imediato da ignorância daqueles que desconhecem a matéria e a mediocridade daqueles que acreditam que sabem de tudo, qual seja, a ideia de que a razão filosofante confunde-se com a loucura inebriante. Ora, o questionamento incisivo e a crítica radical não devem ser confundidos com a inconsistência de um pensamento desarranjado e a incoerência de um juízo patologicamente afetado. Filosofia – repito – não é sinônimo de loucura – ao menos não necessariamente...! Mas, afinal, o que é Filosofia? Pois bem, a palavra “Filosofia” vem do grego e significa amor (filo, fila) à sabedoria (sophia). Dizia Pitágoras (570/571 a.C a 496/497 a.C) que os filósofos não são sábios, pois a sabedoria enquanto tal pertence aos deuses, de modo que aos humanos cabe apenas aspirá-la, amá-la. Nestes termos, o filósofo é o amante da sabedoria, o amigo do saber.  A Filosofia nasce no século VII a.C, entre os Jônios, na Cidade de Mileto, com Tales, desprendendo-se do interior das formulações mitopoéticas que, por sua vez, eram cantadas pelos poetas inspirados, homens tidos como sábios. Quando surge, portanto, a Filosofia opera uma verdadeira transformação na percepção total da realidade. O filósofo, ao contrário do poeta (aedo ou rapsodo), não é mais o sábio que detém o conhecimento dos sortilégios do mundo, e sim apenas um “investigador”.
No entanto, não basta dizer que a Filosofia é o “amor à sabedoria”, posto que o que caracteriza o esforço teórico do filósofo é, também, responder a esta pergunta, levando-se em conta as “aquisições” conceituais dos que o antecederam. Logo, se se disser que o filósofo busca a verdade, tem que se dispor que esta “verdade” é historicamente construída e só pode ser adquirida coletivamente. E, ainda, se se diz que verdade e realidade se confundem, é necessário, então, investigar os limites e possibilidades para o conhecimento das coisas, já que a Filosofia é um exercício racional de constante reflexão. Porém, se o filósofo deve, além de descrever as primeiras causas e os primeiros princípios que regem o conhecimento da realidade física, ele também tem que dar conta dos valores ético-morais que devem orientar a vida e a práxis política, da mesma forma que deve-se ocupar dos juízos de (bom) gosto que definem os limites entre arte e natureza.
Como diria Platão, a Filosofia é para poucos – e não adianta insistir quando não se tem uma espécie de “talento natural”. O número de filósofos no mundo, desde o surgimento da Filosofia na Grécia até os dias atuais, é infinitamente menor que a escala absoluta da população do globo. Excetuando-se, portanto, essa seleta de “livres-pensadores”, quem resta? Ora, restam apenas bons comentadores de Filosofia, professores e alunos (de Filosofia ou não), pessoas que ouviram dizer mas não conhecem, pessoas que desprezam totalmente e, ainda, pessoas que ignoram esta que é a “ciência da liberdade do espírito” – permitindo-me falar em “enigmas” como Hegel. Para concluir, se, como disse Kant, “não se aprende Filosofia, mas a Filosofar”, só tem sentido falar em um ensino de Filosofia em escolas e Faculdades se a preocupação inicial for com uma cultura da reflexão que possibilite uma atitude crítica diante das coisas do mundo e da cultura.

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